25 de abr. de 2009

Paradoxo


"Jamais encontrou nada de essencial nem em seus amores, nem em seu trabalho, nem em suas idéias. Ele é honesto demais para admitir que encontra o essencial no não-essencial, mas é fraco demais para não desejar secretamente o essencial."
(Milan Kundera - "Risiveis Amores")


Já havia algum tempo que ele caminhava naquilo que ele se acostumara a chamar "vazia vastidão incomensurável de..." Nunca conseguiu definir exatamente o que faltava naquilo tudo, por isso terminava sempre a definição em reticências. Era como se o interno e o externo fossem uma extensão um do outro e não havia meio dele saber o que era real nele mesmo ou no mundo que o rodeava. Na verdade ele não conseguia saber onde estava o limite entre o corpo físico dele e o corpo físico do espaço à sua volta. Nestes momentos em que ele mais alucinava do que pensava nesta conceituação, se via consumido pelos próprios pensamentos, como se não existisse nada além da própria idéia em si mesma do que ele era. Realmente não havia qualquer vazio a sua volta a não ser aquele que a idéia que ele tinha de si mesmo e do mundo o fazia acreditar existir. Ele não era uma pessoa mas uma interrogação ambulante que, tentando descobrir tudo o que havia ao seu redor não enxergava mais do que suas próprias dúvidas, que o alienavam de existir plenamente. Mas ele sabia que esse desvínculo com a suposta realidade era nada menos do que uma forma de fugir de suas próprias responsabilidades para com sua existência. Afinal, administrar abstrações tão relativas quanto espaço e tempo, era para ele um esforço extremo para o qual não se sentia devidamente preparado. De qualquer forma ele sabia que não poderia caminhar eternamente sem esbarrar em algo que o trouxesse de volta àquela renegada forma de existência comum a todas as pessoas. Assim, ao continuar caminhando por aquele espaço que ele via como uma vastidão incomensuravelmente vazia, acabou por ser tragado para dentro do insuportável mundo repleto de referências no qual vivemos; e teria sido levado à loucura se a loucura maior não tivesse sido a que dele se apoderou para poder materializá-lo novamente: por um lapso ínfimo de tempo ele deixou de ignorar o mundo e a primeira coisa que viu foi o outro vindo em direção contrária a que ele ia. O outro era ele, mas ele ainda não sabia disso. Levaria ainda algum tempo para que ele entendesse o quanto o outro estava perto de ser ele. Desacostumado de olhar este mundo, foi preciso ensandecer-se para poder se permitir chegar próximo de si mesmo no outro. E não foi uma aproximação fácil, já que, retornando ao mundo, com ele voltavam todos os medos, angústias e, principalmente, as barreiras físicas que ele construiu para se defender sabe-se lá de quê (dele mesmo, talvez). Então o outro que era ele, por ele passou e o arrastou no olhar de quem reconhece a si mesmo naquele outro armado por quem ele passa. E esperou, com paciência oriental, que ele chegasse mais perto. E ele caminhou, lento e desconfiado, sem saber como agir, ornando armadura, espada e escudo, como quem parte para uma batalha completamente apavorado com a derrota certa. Mas ainda não sabia que sucumbiria aos encantos de si mesmo no outro. E o outro, parado, estava desarmado ou, talvez, armado apenas daquele olhar que queimava como um fogo frio; mais tranqüilizador do que atemorizante; mais brilhante que sombrio; mais elucidador do que mistificador. E tinha uma aura branca, talvez uma ilusão reforçada pela cor da roupa que vestia, mas que tinha o poder de fazer cair todas as defesas e transpor as inexpugnáveis fortalezas com as quais ele se vestia. Então ele e o outro se encontraram frente a frente. Não trocaram qualquer palavra, mas que discurso vinha dos olhos do outro! E assim, parados diante um do outro naquela avenida movimentada que fazia parte daquele real insuportável para ele, se olharam fixamente durante longos segundos. E se aproximaram lentamente um do outro, num ritual no qual ele se despia da armadura e se deixava envolver pela aura do outro, ficando os dois cada vez mais nus e parecidos na sua nudez, até se tocarem e se tornarem apenas um, num momento em que se amam profunda e longamente e nada mais existe novamente ao seu redor, embora agora já não exista mais o vazio incomensurável e sim a multidude de cores e formas, e mesmo as outras pessoas, agora comuns e sem significado qualquer, pois eles se bastam no instante do amor que se faz despudoradamente público, mas divinamente puro, e tão puro que ninguém presta atenção neles, porque agora é o mundo que olha para o lugar onde eles estão e nada vêem a não ser, talvez, uma luminosidade pálida de algo como um anjo pousado naquele instante do real subitamente suportável para ele, já que anulado pela própria libertação de si mesmo no outro. Quando já saciados, eles se separam ritualisticamente, da mesma forma como se aproximaram, e o que existe já não é só ele ou o outro separadamente, mas sim ele no outro que parte e o outro presente dentro dele, que segue por aquela realidade que já não tem de ser suportável ou não: apenas é, e ele existe apesar disso.

Flávio Moreira
19/03/93
15:40

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